Governo chegou a nomear coronel da reserva da PM para coordenar grupo de trabalho que irá propor regulamentação de lei orgânica da Polícia Civil, mas voltou atrás após protestos de entidades. Especialista vê avanço de poder político da PM

A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) voltou a causar insatisfação de policiais civis, que veem privilégios do governo à Polícia Militar, agora com a condução de um grupo de trabalho que vai propor a regulamentação no âmbito estadual da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (Lei 14.735/2023). O grupo foi criado a partir de uma resolução publicada na edição do último dia 9 do Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE-SP).

Os direitos, deveres e garantias dos policiais civis paulistas são regidos atualmente por uma lei estadual em vigor desde 1979. Ela deverá ser atualizada para se adequar à nova norma federal, sancionada há pouco mais de um ano para unificar as regras dos estados e do Distrito Federal.

Na resolução paulista que criou o grupo, ficou definido que os trabalhos seriam coordenados não por um integrante da Polícia Civil, mas por um policial militar: o escolhido foi o coronel da reserva Paulo Mauricio Maculevicius Ferreira, hoje chefe de gabinete do secretário de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), Guilherme Derrite (PL).

Começou aí a indignação de policiais civis com a condução da revisão da lei orgânica, com cobranças de diversas entidades de classe à gestão Tarcísio.

Recuo do governo

No dia 14, em nova publicação no DOE-SP, o governo recuou então da escolha de Maculevicius, que ainda integra o grupo, e passou a coordenação dos trabalhos para o secretário-executivo da Casa Civil, Fraide Sales. O novo escolhido não tem, ainda assim, relação alguma com a Polícia Civil. Ele é engenheiro de comunicações formado pelo Instituto Militar de Engenharia (IME) e coronel da reserva do Exército.

Diferentemente da primeira resolução, que tinha a assinatura de Derrite por parte da SSP-SP, a segunda foi assinada por Osvaldo Nico Gonçalves, delegado de carreira e atual secretário-executivo da pasta.

Uma terceira resolução, publicada no dia 20 de janeiro, incluiu nos trabalhos o secretário-executivo da Secretaria de Gestão e Governo Digital (SGGD), Leonardo Sultani.

Ainda vão participar do grupo outras cinco pessoas, confirmou o governo na edição do DOE-SP desta terça-feira (28/1): a advogada Vivianne Wanderley Araújo Tenório, assessora do gabinete do secretário-chefe da Casa Civil; os delegados Múcio Mattos Monteiro de Alvarenga e Marcelo de Lima Lessa, como representantes da Polícia Civil; e os também delegados Luiz Fernando Camargo da Cunha Lima e Milena Massuco Suegama, ambos membros da Assessoria Policial Civil, da SSP-SP. O grupo, portanto, não contempla outras carreiras da corporação que não sejam a de delegado.

Há previsão também de que o coordenador possa convidar representantes das entidades de classe e de órgãos técnicos, além de outros integrantes da Polícia Civil, para colaborar nas discussões.

Insatisfação de policiais civis

Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) havia encaminhado um ofício a Derrite ainda no dia em que foi publicada a resolução que criou o grupo para que o coordenador dos trabalhos fosse Nico Gonçalves. Após a troca de comando do grupo, o sindicato mudou o tom e ponderou que Fraide Sales tem como ponto positivo a “experiência na elaboração de normas e de políticas públicas”, embora não seja um policial civil.

A presidente da entidade, delegada Jacqueline Valadares, relembrou, em vídeo divulgado à categoria, um encontro que haviam tido com o novo coordenador em junho do ano passado.

“O Sindpesp já esteve com ele em reunião na Casa Civil, em que nós entregamos um estudo sobre a defasagem salarial da carreira de delegado da Polícia Civil, com perdas inflacionárias. Também entregamos para ele uma pesquisa feita com mais de 700 delegados, em que identificamos tudo o que vocês consideram prioritário: a questão salarial, a sobrecarga de trabalho, a falta de regulamentação das horas extras, a falta de respeito à carga de 40 horas semanais”, afirmou Jacqueline no vídeo.

Outras entidades de classe, no entanto, mantiveram o descontentamento mesmo com a troca. Foi o caso do Sindicato dos Investigadores de Polícia do Estado de São Paulo (Sipesp).

“A verdade é que é inaceitável que a coordenação do grupo esteja a cargo de um secretário-executivo da Casa Civil com vínculos à Polícia Militar. Tal escolha revela uma incompreensão quanto às demandas e peculiaridades da Polícia Civil, além de colocar em dúvida a imparcialidade e o compromisso com os interesses da categoria”, escreveu, em nota, a entidade.

“Essa postura do governo estadual é vista, pelos policiais, como uma tentativa de enfraquecer a autonomia da instituição e desprezar o papel fundamental que desempenha no sistema de segurança pública”, completou no comunicado.

O Sipesp é um dos integrantes do Resiste PC-SP, fórum que reúne 15 associações e sindicatos das diferentes carreiras da Polícia Civil, como delegados, investigadores e escrivães. O Sindpesp não integra ele. O grupo se reuniu no último dia 23 para tratar do tema, ocasião em que decidiu pela realização de um ato público, ainda sem data definida, para reivindicar participação nos trabalhos.

O coordenador do Resiste PC-SP, delegado André Pereira, que também preside a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Adpesp), poupou críticas mais duras a Tarcísio, a quem disse parabenizar pela revisão da lei orgânica, mas reafirmou a insatisfação da classe.

“O governador precisa dialogar diretamente com os legítimos representantes daqueles que estão na linha de frente, sem intermediários, para não repetir os mesmos erros que o ex-governador João Dória cometeu, ao fechar as portas para nós”, disse, em nota da Adpesp.

Avanço de poder político da PM

Para o advogado e pesquisador Almir Felitte, autor de A História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?, o novo ruído com a Polícia Civil não representa apenas um desprestígio da corporação: é mais uma evidência do avanço do poder político da PM sob a gestão Derrite — que é egresso da corporação — e Tarcísio.

“Mesmo tendo recuado no nome de um PM para essa coordenação, Tarcísio não recuou de um nome que fosse militar. Esse avanço dos militares para além das suas funções tem sido sistemático no atual governo. Vimos isso na exclusão da Polícia Civil da operação ‘Fim da Linha’”, exemplifica.

A operação havia sido deflagrada contra a suposta atuação do PCC no transporte público de São Paulo, em abril do ano passado. Na ocasião, a Polícia Militar realizou seis prisões e cumpriu 52 mandados de busca e apreensão — a Polícia Civil não participou da ação contra os investigados.

À época, diversas entidades de classe, inclusive com atuação em âmbito nacional, acusaram ilegalidades na operação, uma vez que a PM teria assumido atividades de polícia judiciária e investigativa no caso — o que cabe, constitucionalmente, à Polícia Civil. Derrite havia dado especial atenção à operação.

Felitte também cita, entre os sinais de expansão de poder da PM, a proposta de Tarcísio de permitir que a PM registre termos circunstanciados, outra atribuição da Polícia Civil, conforme mostrou a Ponte no ano passado, e as chamadas ações de inteligência da corporação sob o comando de Derrite.

“São ações de investigação policial que acontecem sem qualquer arcabouço legal — já que não são feitas pela via de costume, que é o inquérito policial —, ações em que a PM paulista e o governo conseguiram uma capacidade enorme de criar verdades cada vez mais difíceis de serem checadas pela sociedade”, diz.

Felitte cita como exemplo o anúncio feito por Tarcísio, sem provas, no dia do segundo turno das últimas eleições municipais de que o então candidato à prefeitura paulistana Guilherme Boulos (PSOL) teria apoio do PCC. O Centro de Inteligência da PM, sob ordens de Derrite, preparou posteriormente um relatório para embasar a acusação do governador — apoiador declarado do prefeito reeleito de São Paulo, Ricado Nunes (MDB).

Quando deputado federal, lembra ainda o especialista, Guilherme Derrite apresentou o projeto de lei 2.310/2022, que daria às polícias militares, rodoviárias e penais o poder de investigar.

“Junto a isso, há todo um movimento de policiais militares entrando na política através de cargos eletivos e puxando com eles outros PMs para cargos de nomeação. Em São José do Rio Preto [interior de São Paulo], um coronel da PM foi eleito prefeito e praticamente todos os cargos municipais de primeiro escalão foram dados a policiais militares. Então o que a gente vê, de fato, é uma expansão muito grande do poder policial militar para áreas do poder civil”, alerta o advogado e pesquisador.


Fonte: Ponte Jornalismo
Link da matéria: https://ponte.org/tarcisio-privilegia-militares-na-revisao-de-lei-organica-da-policia-civil/