Relatório da ouvidoria da polícia do estado aponta 45 casos entre policiais civis e militares em 2018, um aumento de 73% em relação ao ano anterior

O estado de São Paulo nunca registrou tantos casos de suicídio entre policiais como em 2018. O Relatório Anual da Ouvidoria da Polícia, divulgado em fevereiro de 2019, mostra que 45 policiais civis e militares se mataram naquele ano, um aumento de 73% em relação a 2017.

No documento, a ouvidoria recomenda, com urgência, que o estado crie um “grupo de acompanhamento da saúde mental dos policiais de São Paulo, formado por profissionais de fora das instituições policiais”.

Segundo o órgão chefiado pelo sociólogo Benedito Domingos Mariano, que já havia ocupado o cargo de 1995 a 2000, a iniciativa tornaria possível “elaborar um amplo diagnóstico das principais motivações dos suicídios policiais nos últimos dois anos e, a partir desse diagnóstico, construir um amplo programa de prevenção ao suicídio”.

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, por sua vez, diz que os policiais já contam com uma rede de apoio psicológico. Em nota ao site Ponte Jornalismo, a pasta afirma que são realizados “atendimentos psicossociais por psicólogos e assistentes sociais do Caps (Centro de Atenção Psicológica e Social)” a policiais militares. Psicólogos e assistentes sociais também “ficam disponíveis para atendimento” a policiais civis, de acordo com o comunicado.

Os casos de 2018

Dos 45 suicídios em 2018:
35 foram de policiais militares
10 ocorreram entre policiais civis

Desses 35 relacionados aos PMs, um ocorreu em serviço, 19 durante o período de folgas e 15 por policiais que estavam inativos.

Em 2017, os dados sobre mortes por suicídio foram:
16 entre PMs
10 cometidos por policiais civis

Ao todo, 71 policiais, entre militares e civis, cometeram suicídio nos últimos dois anos no Estado.

As mortes por homicídios

Entre policiais civis, o suicídio é a principal causa de morte. Em 2018, dez deles se mataram e sete morreram por outras causas (seis foram vítimas de homicídios enquanto estavam de folga e um morreu em serviço, devido a um acidente de trânsito).

Em relação aos policiais militares, o número de suicídios não chega a superar o de homicídios, embora esteja bem próximo. Em 2018, 38 policiais foram mortos durante a folga e apenas três morreram por homicídio em serviço. O número de suicídios foi de 35.

O Nexo conversou sobre o tema com a doutora em ciência política pela USP e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção da UERJ (Universidade Estadual do Rio), Dayse Assunção Miranda. O grupo lançou em 2016 o livro “Por que os policiais se matam?”.

A ouvidoria diz que é preciso diagnosticar as causas do aumento dos suicídios com urgência. O que pode estar por trás dos casos?

DAYSE MIRANDA – Antes de mais nada, precisamos tomar cuidado para saber se estamos olhando para um crescimento das notificações ou do fato em si. Antes de dizermos que cresceu, temos que pensar nessa população. A Polícia Militar do Estado de São Paulo tem o maior efetivo do país, com mais de 80 mil homens e mulheres. Antes de falar de números, precisamos calcular uma taxa para saber quanto cresceu o número de mortes por suicídio em relação ao tamanho do efetivo, entre os da ativa, entre os inativos, e a taxa geral que envolve os dois. Precisamos escolher um caminho para tentar ter uma pista. Não posso dizer que o aumento do suicídio se deve a um problema x, y, ou z. Posso te dizer que, na Polícia Militar de São Paulo, como no Brasil todo, permanece existindo um tabu em torno do suicídio policial.

Nas instituições policiais no Brasil, sejam militares ou civis, os números de casos de mortes vêm aumentando em termos absolutos e ainda não foram abertos para uma discussão. Dizer que existem serviços de atendimento para essa população que foi treinada para ser desconfiada, para achar que é formada por super-heróis e não perceber que pode adoecer, é muito pouco. Quando tem uma instituição como a polícia do estado de São Paulo, que criou um programa de prevenção, e de lá para cá só tem crescimento de números absolutos, ela precisa saber explicar o que está acontecendo. Onde estão os resultados desse programa?

O Programa de Prevenção de Manifestações Suicídas começou há mais de dez anos. Eu falo no tom de cobrança porque participei de várias conversas com a Polícia Militar de São Paulo para discutir os números, e um dos motivos que nos foi trazido foram problemas familiares. A gente precisa ter outro grupo, um grupo de controle. Eu não posso dizer que o suicídio é um problema essencialmente familiar, uma briga com a namorada, com a esposa, com os integrantes da família. Generalizar torna o argumento pobre.

Eu preciso de mais informações. É muito pouco para entender um problema tão grande que envolve tantas pessoas a ponto de a ouvidoria do estado lançar um relatório apontando que policiais morrem mais devido ao suicídio do que em combate.

Quais características tornam esse grupo tão vulnerável?

DAYSE MIRANDA – Os estudos nacionais e internacionais mostram que os policiais morrem mais na folga. E é mais fácil um policial morrer de suicídio em São Paulo do que ser morto em confronto. Por um lado, os dados revelam um lado bom da instituição. Ela tem um conjunto de procedimentos padrões, de técnicas. Mostra o quanto a instituição é treinada para enfrentar os confrontos. O que sei é que o policial morrer menos alvejado em combate significa que é mais bem treinado e que existe uma política institucional que o protege. Agora, morrer mais por suicídio mostra uma fragilidade. Para as instituições de segurança pública no Brasil o suicídio não é uma questão de saúde pública. Se há tantos policiais morrendo por suicídio, o que acontece com esses homens? O que acontece em suas vidas profissionais que os tornam tão vulneráveis?

Eu tenho algumas pistas com base nos estudos que realizei, mas não posso dizer que é a causa na Polícia Militar do Estado de São Paulo. Um deles que eu apostaria é o fato de policiais estarem em contato com grande frequência a situações traumáticas como, por exemplo, a perda de um amigo. Se ele tem que voltar de imediato para o trabalho, isso muitas vezes o vulnerabiliza emocionalmente.

“Algo comum, além da perda de amigos, que a gente percebeu nos relatos de policiais que entrevistamos – e foram mais de 3.000 – é que eles se sentiam totalmente vulneráveis do ponto de vista dos abusos de autoridade, das perseguições, agressões verbais e da falta de confiança no ambiente policial.”

Acima de tudo, vem dessa violência emocional que eles passam por conta dessas relações conflitivas entre superiores, aqui no Rio, principalmente, onde os praças não têm espaço de voz. São sempre aqueles que estão na frente do combate e se sentem desprotegidos.

Eu não sei em São Paulo. Sabemos muito pouco sobre o que pensam os policiais de São Paulo. Mas tem uma coisa interessante: o policial de São Paulo, quando é alvejado, entra num programa específico que faz parte do Centro de Atenção Psicológica e Social. Ele é acolhido e passa por uma sessão de atendimento. Se tem esse atendimento, significa que a instituição está olhando para ele. Mas, por que ele ainda se mata? Aí é uma lacuna que precisa de avaliação. Infelizmente quando nós perguntamos qual o resultado do programa, a instituição não sabe mensurar, porque não trabalha com indicadores, mas percepções ao longo desse trabalho.

Eu parabenizo a instituição por ser a primeira do país a ter um programa de prevenção de manifestação suicidas, mas o programa fica a sete chaves dentro da instituição. Era preciso ser aberto para as outras polícias do país, para ser exemplo e se discutir as possibilidades de prevenção, para traçar as estratégias e como fazer. Criar um grupo de estudo, de trabalho, além do atendimento psicoterapeuta. Porque o estudo vai fundamentar e atualizar as ações pontuais. E é isso que os gestores precisam entender: os pesquisadores, quando fazem seus estudos, não querem diminuir a instituição. Querem entender o fenômeno para dar subsídios a políticas institucionais e políticas públicas inteligentes e eficazes.

Para conhecermos a magnitude do problema, precisamos calcular a taxa de suicídios de policiais controlando pelas variáveis sociodemográficas, como por sexo e idade. Por exemplo, para afirmarmos que a taxa de suicídios entre policiais é superior à da população geral, temos que calcular a taxa de suicídio da população masculina de 18 a 55 e a taxa de morte da população masculina acima de 55 anos, que são os aposentados, e então comparar com o grupo da população geral com as mesmas características.

A gente sabe que, no caso de policiais que tentam e morrem de suicídio na reserva, e isso já está demonstrado em vários estudos americanos, há relação com os sintomas de transtorno de estresse pós-traumático e suicídio (conhecida pela sigla TEPT). Policiais, ao longo de 30 anos de carreira, tiveram contatos com situações de violência, conflitos burocráticos, conflitos com seus superiores, foram punidos injustamente, perseguidos em processos judiciais ou viveram nas piores condições de trabalho.

Os estudos americanos apontam um conjunto de doenças físicas e emocionais e, quando o policial entra na inatividade, esses problemas têm um gatilho. Na inatividade, ele se sente inadequado, se sente um estranho na família. Ele ama a corporação, não sabe como é viver sem estar dentro da polícia, então começam os problemas: o alcoolismo, as drogas, aumentam os conflitos familiares. Como se trata isso? Será que as instituições estão habilitadas para preparar esse policial para a inatividade? São Paulo tem um programa. Como anda? Tem dado certo? Eu preciso saber, a sociedade precisa saber.

Não podemos aceitar que policiais inativos estejam morrendo. Por quê? Para mim é muito pouco dizer que um dos motivos desse aumento é que eles eram inativos. Ele adoece porque muitas vezes perde o que se chama de “filia”, a identificação com a instituição, e como ele passou a maior parte do tempo fora e volta para casa, passa a ser um estranho dentro de casa. Esse processo de adoecimento torna o policial vulnerável ao comportamento suicida.

A ouvidoria defende a criação de um “Grupo de Acompanhamento da Saúde Mental” formado por profissionais de fora. A sugestão vai na direção certa?

DAYSE MIRANDA  – O ouvidor está plenamente correto quando diz que é preciso um estudo aprofundado. Esse é o trabalho que nós estamos fazendo desde 2010, num grupo composto de sociólogos, psicólogos e agora educadores. Há mais de cinco anos estamos fazendo pesquisas e tentando colocar esse tema na agenda do poder público e dos atores institucionais.

A gente vem falando que, ou se investe em novos estudos, ou vamos continuar repetindo crescimento com dados absolutos sem entender o problema na sua magnitude e na sua especificidade quando nós considerarmos variáveis situacionais, institucionais, sociodemográficas, características específicas de cada instituição e o que há de comum em relação a outras do país.

Tem um dado oficial com qual tive contato e questionei. Nós vimos que 80% dos policiais que morreram por suicídio na Polícia Militar de São Paulo não tinham passado pelos serviços oferecidos pela instituição. Como pode? Para isso, a gente precisa fazer um outro trabalho, que é formar multiplicadores de prevenção de suicídio. Não se trata de formar psicólogos no meio da tropa, mas sim de criar uma cultura da sensibilização e oferecer ferramentas para que esse policial mais sensível, treinado e com o olhar apurado possa identificar, saber abordar, ter um discurso mais acolhedor, uma comunicação mais assertiva, não ter preconceito com a saúde mental e saber para onde encaminhar.

É possível que os serviços que já existam não sejam suficientes?

DAYSE MIRANDA – Falta esse olhar mais crítico, a necessidade de construir indicadores de avaliação e a coragem de inovar. Falta também abrir para um debate com outros profissionais para pensarmos juntos. Não é só um problema de São Paulo, é nacional e mundial. Policiais formam um grupo de risco vulnerável no que tange ao adoecimento mental e psíquico por diversos fatores.

Existe um preconceito ainda latente de representantes do poder público, atores institucionais da segurança pública, comando geral, chefe da polícia e própria tropa, contra aqueles que sofrem e que não têm coragem de assumir. E não há conhecimento suficiente para poder acolher e saber o que fazer numa situação de crise.

É tratada como uma questão essencialmente individual que precisa ser discutida de forma multidisciplinar. É um problema de saúde pública, um problema emocional, uma questão política, social e institucional. É preciso fazer uma prevenção integrada em todas essas dimensões, mexer nas cargas horárias, nas relações de poder. Não se trata de uma hierarquia rígida ou não, mas de respeito humano. As relações estão fundamentadas no abuso de  autoridade, e isso não é exclusivo de policial militar ou civil, isso está presente na sociedade brasileira. É o velho ditado do [antropólogo] Roberto DaMatta: ‘Você sabe com quem está falando?’. Quem está dentro de uma instituição opressora não pode exercer seus direitos, suas vontades, não podem usar criatividade, não têm como. Vai adoecer, e com o policial não é diferente. O estado tem que garantir a segurança desse policial, mas acima de tudo oferecer saúde, sem longas jornadas de trabalho, sem escalas abusivas. Policiais aceitam até ganhar pouco, mas não toleram abuso de autoridade, transferências arbitrárias, alterações da vida deles, como se eles não fossem autores da própria vida.

Fonte: NEXO
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/02/16/O-recorde-de-suic%C3%ADdios-de-policiais-em-SP.-E-o-tabu-sobre-a-quest%C3%A3o?utm_source=socialbttns&utm_medium=article_share&utm_campaign=self